Era uma vez...
No Norte de Portugal, mais especificamente na região do Parque Nacional Peneda Gerês, o "pau", também conhecido como vara, cajado, varapau, lodeiro, marmeleiro, desempenhava um papel fundamental na vida do homem, que enfrentava os rigorosos invernos e o árduo trabalho em uma natureza agreste e ativa. O pau servia como ferramenta essencial para manejar os animais que diariamente auxiliavam nas tarefas agrícolas, servia como terceira perna de apoio nas longas caminhadas em trilhos agrestes, e servia também para defesa contra inimigos, lobos e javalis. Em resumo, este instrumento simples, mas versátil, era inseparável do homem rural, acompanhando-o em todas as facetas da vida quotidiana.
Os habitantes de Soajo, conhecidos como Soajeiros ou Monteiros, nunca aceitaram bem a soberania administrativa de Arcos de Valdevez como sede de conselho, sendo que Soajo hoje é freguesia, mas em outros tempos foi vila sede do concelho composta por três freguesias, Soajo, Ermelo e Peneda. Posto isto, sempre que em Arcos de Valdevez se falava que os Soajeiros queriam descer à vila em atitude hostil, o alarmismo não era pequeno.
Solidários entre si, os Soajeiros são comumente conhecidos pela sua independência de espírito e combatividade, valentões, diferentes, bairristas e briosos, estando lendariamente representados pela figura do Juiz do Soajo. Eram também, tidos como portadores de um “ânimo inquieto” nas romarias ou feiras, em que o pau era o complemento indispensável do homem, sendo os Soajeiros temidos jogadores.
Certa vez, no início do século XX, sucedeu-se um evento que marcou a história de Arcos de Valdevez. Uma rixa entre homens de Soajo e da vila de Arcos de Valdevez, em que os desentendimentos foram de tal modo renhidos e violentos que a imprensa diária lhe deu honras de notícia, mesmo Arcos de Valdevez estando fora dos grandes centros. Também, sendo “O Jogo do Pau” uma arte marcial portuguesa, tal evento virou lenda por todas a escolas do país.
Segundo registos existentes, e o testemunhos dos mais velhos, a história foi a seguinte:
Em 1902 na romaria da Senhora da Peneda, um grupo de Soajeiros desentendeu-se com um grupo de gentes da vila, onde supostamente um dos seus tinha sido maltratado. Os ânimos aqueceram, palavra puxa palavra, e daí a passarem a vias de facto, nada demorou. Zumbem os marmeleiros no ar, esgalha daqui, escacha dali, cabeças rachadas, mas parece que o fiel da balança se inclinou para os homens do vale, talvez em maior número.
Mas o pior estava para vir.
Após tal acontecimento, e para aquecer ainda mais os ânimos, indivíduos de perto da vila (Prozelo) haviam assediado mulheres dos Soajeiros na sua ida a Arcos, já de certo propositadamente. No entanto, desenganaram-se aqueles que achavam que podiam medir as suas forças com estes destemidos serranos.
No dia da habitual feira de gado na vila de Arcos, em Soajo tocou o sino a rebate*, mas desta vez fora para se juntaram os homens Soajeiros todos. Numa espécie de batalhão, caminharam em massa serra abaixo, com intuito de marchar sobre a vila. Autoridades locais, conhecedores desta agitação, foram esperá-los a meio caminho (Cabana Maior) para tentar demover os Soajeiros de tal incursão. Mas de nada valeu.
*toque emergência típico de aldeias usado quando havia necessidade de o povo acudir por exemplo um incêndio.
Chegados à vila, subiram propositadamente a calçada que conduzia ao local onde se fazia a feira do gado (acima do atual Largo da Lapa), e onde, se reúnem os puxadores de pau, os varredores de feiras, os mestres, enfim, na arte de rachar cabeças. Mais na frente, ia um Soajeiro com um ramo de flores colhido a caminho, que de forma provocatória, obrigava os homens a beijar, na esperança que algum recusa-se. Não tardou nada até ao desfecho pretendido.
Iniciou-se o que ficou conhecido como o “Varrimento da Feira de Valdevez“. Com os seus toscos varapaus de cerquinho, em rodopio cego, zimbravam de cima para baixo sem dó.
No entanto, os Soajeiros caíram num erro, o de “malhar” a torto e a direito sobre os surpreendidos lavradores e contratadores de gado que na feira se encontravam, vindos de outras aldeias e vilas, sendo inclusive Arcos de Valdevez o maior concelho do Alto-Minho.
Posto isto, não tardou que a impulsiva estratégia Soajeira tivesse o desfecho natural. Todos os que tinham uma boa vara nas unhas, depois de se “cobrirem” dos primeiros “talhos”, responderam-lhes com uma torrente de pancadaria, dispersando assim os Soajeiros. Para alem de não ter havido feira nesse dia, também não houve vencedores pois todos perderam, tendo-se inclusive perdido uma vida. Mais impactante, até porque rixas houve muitas, foi a frase que os Soajeiros proliferaram, numa espécie de aviso para a vida:
"Quando saímos do Soajo, já os sinos ficaram a tocar pelos que haviam de morrer!"
Relativamente à arte marcial “Jogo do Pau”, foi realizada uma demonstração aquando da inauguração da Casa do Povo de Soajo, em 28 de Junho de 1953. Infelizmente com o passar do tempo, a tradição desta arte marcial como figura recreativa, tem se vindo a perder. Na freguesia de Soajo, haverá ainda alguns homens que possam conservar algumas memórias, e também nos grupos etnográficos que se trajam a rigor acompanhados da temida vara.
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